sexta-feira, 20 de abril de 2007

PÁGINAS SOLTAS DO DIÁRIO DE UM LEITOR [VIII]

ANGELOLOGIAS

Lisboa, Praça do Chile. — 20 de Março de 198...

Uma certa leveza é‑me necessária na proporção directa da falta de encontro. Falei-te disso, Ângela, e aconteceu‑me fazê-lo no âmbito do frívolo kunderiano. No entanto, vislumbro agora o erro de acomodar-me a sinais de outra origem. A leveza de que falo só pode falar-me no idioma de Dioniso. (A de Tomás não me interessa.)

Meu ser, todo ele se inclina sob o signo do peso (há quem lhe dê nomes com maiúsculas). O mar é como palavra ferida por uma aférese. Por isso se me torna característica a linguagem dos clubes náuticos onde se transmude a alma em barco à vela. Ser advérbio de modo na família de quem bebe, fazer de conta na contabilidade da Vida, andar com a Lua na cabeça... — sim, porque não?, iludir a circunstância poderosa.

Hipocondríaco do sentimento (assim me defino), desconheço a perversidade do sintoma, ainda que vítima do poder analítico do Continente. Os médicos são doentes sem cura: assim me sinto. Quando ler se torna um hábito cruel, os olhos incham no vazio. Escreve‑se isso mesmo, com o teclado a dar‑se ares de corpo altivo de mulher, pois mamilos delicados se combinam imediatamente com vogais, e assim fica perto o amor, comércio cerebral, e também, Ângela, se desenha a tua silhueta nos caracteres perfilados no engano da sequência irresponsável do vocabulário em guerra (a ver se trama o escriba?).

Passa‑se o papel a limpo, e afinal não temos como negar essa presença indiscreta de um seio colhido no entreforro das sílabas. Que são três! Conta que Deus nenhum fez! E se algum arqueólogo delicado se desse ao trabalho de pôr as mãos na terra desta terra... Ah! Quantos indícios pautariam o argumento de quem não se cala no interior da boca?

Ângela, faz‑se tarde! — e a dor principia no seu jeito de lobo inqualificavelmente marinho. Toma contornos aquáticos, que a alma é aquário. (Os peixinhos vermelhos? Sabe‑se lá o que são!)

O discurso do amoroso é decerto este: falho de entendimento, lânguido, derretendo‑se como açúcar entre os lábios amarrotados pela força da leitura. Também por força de um obscuro ósculo alcalino. Entretanto, o curso do tratado angelológico permite-nos dar uma volta ao silêncio.

Eurico de Carvalho (Editor)

In «O Tecto»,

Ano XVIII, n.º 55,

Abril/2007, pág. 6.

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