PÁGINAS SOLTAS DO DIÁRIO DE UM LEITOR [VI]
A CABINA DO INFINITO
Vila Nova de Mil Fontes: 198...
Houve um tempo, quando era ainda guardador de palavras difíceis, em que nada, por muito que fosse, punha em causa a minha dramática paixão pelas coisas graves em desfavor das leves. Dialogava com almas pelo telefone, mesmo que tivesse de andar quinze minutos a pé. É por isso que hoje sofro de reumatismo pneumático.
Quantos impulsos me permiti ter então na cabina telefónica do Infinito! Não que me arrependa, embora abrigasse sob o capote da Metafísica o desconhecimento prático do outro e da sua figura. Estudante de Teologia, cultivava flores de papel nos Jardins Suspensos da Sr.ª Razão. Uma vergonha de origem retórica impedia‑me de fazer o mais simples: levantar-lhe as saias. Teria assim descoberto o que só tardiamente soube por trás das costas: a involuntariedade ominosa da erecção! Mortalíssimo pecado segundo o onânico regime do pudor logocêntrico!
E agora? Não esvazio os bolsos à maneira russa, nem os encho de poesia distribuível pelo corpo de quem passa por mim na sua passagem. Agora escrevo isto e aquilo sem ânsia juvenil de transformá‑lo num presente contínuo exposto à loucura heteróclita de outrem. E agora que me limito a cantar no chuveiro, estou pronto a lançar-me ao rio, porque já conheço o destino: o mar cuja cor mergulha nos olhos de quem o vê.
Eurico de Carvalho (Editor)
In «O Tecto»,
Ano XVIII, n.º 55,
Abril/2007, pág. 6.
Etiquetas: PROSA
0 Leituras da Montr@:
Enviar um comentário
<< Home