quarta-feira, 18 de abril de 2007

PÁGINAS SOLTAS DO DIÁRIO DE UM LEITOR [VI]

A CABINA DO INFINITO

Vila Nova de Mil Fontes: 198...

Houve um tempo, quando era ainda guardador de palavras difíceis, em que nada, por muito que fosse, punha em causa a minha dramática paixão pelas coisas graves em desfavor das leves. Dialogava com almas pelo telefone, mesmo que tivesse de andar quinze minutos a pé. É por isso que hoje sofro de reumatismo pneumático.

Quantos impulsos me permiti ter então na cabina telefónica do Infinito! Não que me arrependa, embora abrigasse sob o capote da Metafísica o desconhecimento prático do outro e da sua figura. Estudante de Teologia, cultivava flores de papel nos Jardins Suspensos da Sr.ª Razão. Uma vergonha de origem retórica impedia‑me de fazer o mais simples: levantar-lhe as saias. Teria assim descoberto o que só tardiamente soube por trás das costas: a involuntariedade ominosa da erecção! Mortalíssimo pecado segundo o onânico regime do pudor logocêntrico!

E agora? Não esvazio os bolsos à maneira russa, nem os encho de poesia distribuível pelo corpo de quem passa por mim na sua passagem. Agora escrevo isto e aquilo sem ânsia juvenil de transformá‑lo num presente contínuo exposto à loucura heteróclita de outrem. E agora que me limito a cantar no chuveiro, estou pronto a lançar-me ao rio, porque já conheço o destino: o mar cuja cor mergulha nos olhos de quem o vê.


Eurico de Carvalho (Editor)

In «O Tecto»,

Ano XVIII, n.º 55,

Abril/2007, pág. 6.

Etiquetas:

0 Leituras da Montr@:

Enviar um comentário

<< Home