terça-feira, 10 de abril de 2007

EDITORIAL [II]



Deambular pelas ruas de Vila do Conde é ter o gosto de folhear algumas das mais belas páginas da literatura portuguesa. Ó dulcíssimo leitor, não tenha dúvidas! Se as tiver, porém, dar‑me‑á o prazer de o convidar para uma visita à cidade. Hei‑de mostrar‑lhe muitas casas baixas e altas silhuetas de escritores de longo curso. E se marcássemos já a nossa caminhada? Agrada‑me a ideia de o saudar no Largo dos Artistas. Não poderia ser melhor o ponto de encontro. Aqui estamos, pois. Tomemos a Rua de S. Bento, se faz favor. Talvez possamos cumprimentar o Ruy Belo. Sim, é verdade, o poeta partiu, mas ficaram os poemas. Que lindo este, não acha? Nunca o tinha visto? As pessoas passam tantas vezes ao lado deste painel... (Enfim, meu amigo, há quem leve a vida sem levantar os olhos do chão.) Mas dê‑me a alegria de o ler para nós! Agora? Vá lá, está toda a gente à espera! (Será preciso ir para o outro lado do passeio...) Podemos começar? Não se envergonhe, homem! Digo eu o primeiro verso: «Esta rua é alegre.» (Força!) «Não é alegre uma rua anónima / mas a rua de são bento em vila do conde / vista por mim certa manhã após a chuva / e o nevoeiro a dissipar-se já junto de santa clara / E no entanto não é a rua de são bento que é alegre / Alegre sou eu. E nem mesmo é que eu seja alegre / Acontece simplesmente que me sirvo destas palavras / numa manhã de chuva para falar falar por falar / e não falar de mim ou de uma certa rua / Não costumo por norma dizer o que sinto / mas aproveitar o que sinto para dizer alguma coisa / Isto, porém, são coisas que há já algum tempo se sabem / e talvez venham aqui para salvar este momento / para salvar romanticamente este momento / ou então para ilustrar um pouco desta vida que se perde / e não só ao viver‑se mas ao pensar‑se sobre ela / ao atraiçoá-la tantas vezes como condição indispensável do poema / Mas que dizia eu? Dizia apenas “esta rua é alegre” / O mais é só comigo e com a subjectiva forma como passo a minha vida.» Parabéns! Não lhe faltam os aplausos de quem nos quis acompanhar!
Quer dar‑me o braço, meu caro senhor? Como acabou de dizer, daqui vê‑se perfeitamente o Mosteiro de Santa Clara. Sabe quem lá está? D. Afonso Sanches. Nunca ouviu falar de tal personagem? Deixe‑me elucidá‑lo… Filho bastardo de D. Dinis, herdou do pai o gosto pelas cantigas de amor e amigo. E, além de ter sido original trovador, devemos‑lhe também a fundação do convento. Em 1318! Dela, aliás, derivou todo o crescimento económico e demográfico da Vila. E o seu imenso património monumental merece atenta admiração, não acha?
Mas deixemo‑nos de lições de História! É altura de prosseguir viagem. Já viu a Capela de Nossa Senhora do Bom Socorro? Não? Estamos a poucos metros de distância. Bastam dez minutos de andar palrador e vagaroso… Ah! Cá estamos… Trata‑se de uma obra de Gaspar Manuel, piloto da Carreira da Índia. Exemplo maior do chamado «revivalismo indiano», tornou‑se matéria‑prima do olhar em 1603. Repare na redondeza da abóbada! Curiosa forma… Adiante! Não o trouxe aqui para ver o sonho oriental de um marinheiro. Gostaria que lesse, sim, a quadra escrita no muro que serve de suporte à capelinha. Em voz alta, se não se importa… É que, convenhamos, vale a pena ouvi‑lo! «E o Sol desmaia na cal / da capela a branquejar / da Senhora do Socorro / onde sonhei me ir casar.» Private joke de José Régio? Que incerteza imorredoira!
Deus meu, caríssimo, veja as horas que são: cinco da tardinha! E muito nos falta ainda ver: as moradas de Antero, Camilo, Eça e Guerra Junqueiro. Que quadrilha, hem? Vamos lá, que se faz tarde!

Eurico de Carvalho
In «Jornal dos Arcos», n.º 3 (Dezembro de 2006), pág. 2.



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