terça-feira, 20 de março de 2007

JOSÉ RÉGIO E FREUD

Para que não haja equívocos entre mim e quem me lê benevolamente, desde já o aviso: não sou “regiano”. Mas sempre me fascinou – confesso – a Confissão dum Homem Religioso. (Porquê? Que sirva aqui de resposta – e por agora – a clássica atracção dos contrários.) Publicada há vinte anos pela Brasília Editora, trata-se do “mais importante e extenso texto póstumo do grande Escritor” (pág. 7). São palavras do responsável pela sua edição, Orlando Taipa, professor de Filosofia e amigo íntimo do patrono da nossa escola, na qual, aliás, exerceu a actividade docente, tal como o testemunha (e é bom lembrá‑lo…) a placa que se encontra na sala número trezentos e vinte e um.

Entre as causas desse fascínio, força motriz da actual escritura, agiganta‑se a galeria de referências a Freud. Implícitas ou explícitas, são múltiplas, de facto, ainda que dispersas pelo conjunto da obra: cf., por exemplo, páginas 28, 52, 73, 74, 125, 150, 184 e 185. Avaliá‑las devidamente – note-se bem –, subordinando-as a um intento crítico global, isto é, que tenha em conta toda a bibliografia do autor vila‑condense – eis, por enquanto, uma tarefa impossível. Com efeito, dadas as limitações de um artigo de jornal, faz-se mister reduzir o campo de análise. Assim sendo, reduzi‑lo‑ei à questão de Deus, sem que esta redução, porém, implique o recalcamento da ambivalência de José Régio em relação à Psicanálise: ora admira Freud, reconhecendo o seu contributo para a dilucidação da génese da arte e, em particular, da sua produção literária (cf. pág. 74), ora recusa – sem o nomear – a sua “pobre psicologia”, integrando-a destarte numa corrente de pensamento – o positivismo –, na medida em que ela nos dá uma “interpretação simplista, realista, psicofisiologicista, do fenómeno religioso” (pág. 125).

Atentemos nesta frase surpreendente: “Deus perseguia-me” (pág. 131). De que modo devemos lê‑la? Que em José Régio, “místico muito imperfeito ou intervalar” (pp. 128-9), Deus se configura insistentemente como problema. – Com certeza! – Mas de uma forma existencial – e não especulativa. Quer isto dizer que põe de lado a Filosofia. Enquanto discurso do Universal, ou melhor, indiferente às vicissitudes do indivíduo, ela apresenta‑se como uma distracção da Razão (“o nosso meio mais comum de superficialmente nos entendermos”: pág. 139) e, enquanto tal, susceptível de afastar o homem de Deus (cf. pág. 189). (Pela sua assinatura, tal opinião não deixa de ser paradoxal, tanto mais que lembra um famoso dito anatemático de Lutero: a denúncia – num outro contexto, é certo –dos laços entre a Razão e o Diabo, o Grande Separador.) Em todo o caso, apoiando-se implicitamente em Pascal, ou antes, numa oposição que o francês tornou célebre – “Deus dos filósofos” vs. “Deus de Abraão, de Isaac e Jacob” –, José Régio tem plena consciência da particularidade inerente à sua maneira de posicionar o problema da existência de Deus:

Sem dúvida há, houve e haverá grandes pensadores aos quais se não põe de este modo o problema da existência de Deus. Para os quais, digamos, nem tem sentido o problema da existência real, objectiva, pessoal, de Deus, – e chamam Deus à ideia que de Deus ou não‑Deus formaram. Este é, suponho, o chamado “Deus dos filósofos”. A tais filósofos parecerá mesquinha, ridícula, primária, antropomórfica, uma existência de Deus tal como a exigem os místicos. (Não falo, claro está, dos filósofos simultaneamente místicos ou crentes.) Em contrapartida, aos místicos parecerá vazio ou nulo tal “Deus dos filósofos” – correspondente, afinal, a sua posição à de uma negação de Deus (pág. 110).

Em verdade, condenando o Deus da Razão em nome do Deus da Fé, José Régio critica o deísmo filosófico, religião de iluministas e livres‑pensadores. Como lhes repugna o milagre, recusando então toda a intervenção sobrenatural, Revelação ou Graça, e como aquele, por sua vez, postula a necessidade prática da manifestação de Deus (muito embora admita vários graus: cf. pp. 139-140), não poderia senão tomá-los como ateus.

Não sei se José Régio terá realmente lido O Futuro de uma Ilusão. Datada de 1927, trata-se de uma obra em que Freud tenta, epistemologicamente falando, uma verdadeira empresa: a extrapolação para o mundo da cultura dos dados clínicos da psicanálise. É aí que se reitera a fórmula cuja fortuna ninguém ignora: a equação entre religião e neurose obsessiva. Para o génio de Viena, as ideias religiosas “não constituem senão precipitados de experiência ou resultados finais de pensamento: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade” (pág. 48 da ed. útil.: trad. brasileira de José Abreu – Imago Editora, 1997). Dentre eles, naturalmente, destaca-se a necessidade de protecção, à qual Régio, aliás, justificando o “sentimento de Dependência [que] é característico dos místicos” (pág. 25), também alude. Além do que, diga-se, confessa: “E falando em necessidade, bem vejo como à primeira vista pareço dar razão aos que supõem [à semelhança de Freud] os deuses inventados pelas necessidades dos homens” (ibidem). Mas este reconhecimento não o impede de defender paradoxalmente – e na mesma página – a sua posição:

Aqueles explicadores eram descrentes de Deus, e crentes na sua pequena ciência. Eu cria em Deus mesmo não crendo; e até compartilhando, em certos momentos, de aquela tal “sua pequena ciência”.

Eis uma passagem importantíssima para a compreensão da natureza “intervalar” da religiosidade regiana, expressão pessoal e anti-institucional de uma dupla insuficiência humana: intelectual e volitiva (cf. pág. 131). Ademais, nessas palavras ecoa a subtil desmontagem de um pressuposto positivista: a ideia de que o trabalho científico – única estrada que nos pode levar, segundo Freud, a “um conhecimento da realidade externa” (pág. 51) – teria valor em si e por si, isto é, independentemente de qualquer valorização subjectiva. Ora, numa época em que se admite comummente a impossibilidade de um “fundamentum inconcussum” do saber, seria uma ingenuidade não ter presente a seguinte evidência: a ciência, sem dúvida, pressupõe uma aposta – a crença na Razão.

Mas é bastante significativo que, tratando ambos da questão de Deus sob pontos de vista diametralmente opostos – misticismo vs. positivismo –, acabem finalmente por se encontrar num ponto fundamental: a crítica do “Deus dos filósofos”. Já conhecemos a de Régio. Vejamos agora a de Freud:

Os filósofos distendem tanto o sentido das palavras, que elas mal retêm algo de seu sentido original. Dão o nome de “Deus” a alguma vaga abstracção, que criaram para si mesmos e, assim, podem posar perante todos como deístas, como crentes em Deus, e inclusive gabar‑se de terem identificado um conceito mais elevado e puro de Deus, não obstante significar seu Deus agora nada mais que uma sombra sem substância, sem nada da vigorosa personalidade das doutrinas religiosas (pág. 52).

Não por acaso, a rejeição regiana do deísmo passa exactamente – e em conformidade com o cristianismo – pela concepção de Deus como pessoa: Deus-Pai. Daí que José Régio se interrogue nestes termos:

Que pretendo, então, dizer, quando digo que o Deus filosófico me não prestava, me não servia para nada? Simplesmente que para o místico Deus é uma personalidade [“vigorosa personalidade”, diria Freud (pág.111)] (pág.111).

Não gostaria de concluir a presente reflexão gostaria de concluir a presente reflexão sem o recurso à minha experiência profissional: como professor de Filosofia que sou, não me reconheço em José Régio nem em Sigmund Freud. Tanto um como outro recusaram o exercício do filosofar. Se primeiro o fez em prol de uma elevação “pneumática” motivada pelo apelo sedutor do Inefável, o segundo, pelo contrário, fê‑lo por força de um mergulho dogmático na “positividade morta” do Dado. Estamos perante uma alternativa: cair de Cila – o misticismo – em Caríbdis – o positivismo. Contudo, e por último, quem filosofa com autenticidade só pode achá‑la inaceitável, obrigando‑se, pois, à sua superação racional. Em suma: contra o Dado e Inefável, escolhe a Palavra (= Logos)

Eurico de Carvalho

In «O Tecto»,

Ano XIV, n.º 35,

Janeiro/2002, pág. 7

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